13 enero, 2011

A burocratização do ponto de vista das organizações libertárias

20 de Outubro de 2010  
Categoria: Ideias & Debates
Afinal, a sabedoria política não está em preservar intactos os princípios mediante o isolamento sectarista ou a inércia, mas em saber como preservá-los quando se precisa cooperar com companheiros que divergem ideológica e pragmaticamente de nós. Por Eduardo Tomazine Teixeira
escher-2Os companheiros do coletivo Passa Palavra presentearam os seus leitores, há algumas semanas, com o excelente artigo “Entre o fogo e a panela: movimentos sociais e burocratização”. Nele apontam a burocracia como o “inimigo interno” da classe trabalhadora, um dos responsáveis pela degenerescência dos partidos de esquerda e dos sindicatos, e uma ameaça aos movimentos sociais, tratando de analisar algumas das causas do processo de burocratização. Lendo-se o texto, nota-se claramente que a análise e as proposições defendidas pelos companheiros derivam da sua experiência em animarem, colaborarem com, e observarem os movimentos sociais em suas lutas concretas, o que diferencia esta análise de um certo tipo de reflexão sobre os movimentos sociais que pretende entendê-los (e instruí-los!) apenas de longe, baseados, principalmente, em um conhecimento de cátedra (ou em suas vulgatas), que dificilmente resiste aos exames da praxis.
No entanto, em que pese a minha concordância com as conclusões gerais as quais chegam os companheiros do Passa Palavra – a passividade das bases; a cristalização de militantes em funções de comando e de negociação com o aparelho do Estado; a secundarização dos mecanismos de autofinanciamento em primazia do financiamento externo; a constituição de “militantes liberados” e o fomento de uma espécie de concorrência no interior da base social do movimento para o acesso às conquistas materiais, destacados como elementos ativos da consolidação de uma burocracia, e a recuperação dos princípios de controle de delegados desenvolvidos pela Comuna de Paris, como formas de imunizar-se contra a burocratização – ficam patentes algumas tensões, as quais derivam, na minha opinião, da ênfase da análise sobre as organizações dos movimentos sociais hierarquizadas, as quais carregam em si os gérmens da burocracia.
Tendo em vista, portanto, serem os motivos de concordância muito mais numerosos do que os de desacordo, o artigo que segue não pretende ser uma espécie de contraponto crítico ao artigo dos companheiros do Passa Palavra, buscando, antes, ser um complemento, enfatizando o problema da burocratização de um ponto de vista libertário. Acreditamos que a abordagem do problema em tela se justifique porque, malgrado a interdição da existência de hierarquias formais no interior de organizações libertárias, o espectro da burocratização segue presente, uma vez que o seu fundamento está nas relações sociais em si, e não apenas na sua formalização, como bem enfatizou o companheiro Ricardo Rugai, em seu artigo “O fetiche ‘antiburocrático’ e a falta de participação”. Além do mais, mesmo uma organização radicalmente libertária deve refletir sobre como lidar com instituições heterônomas, tais como o aparelho do Estado ou os partidos, entendendo que, em muitos momentos, será preciso negociar e até mesmo colaborar com eles. Tal reflexão exige a identificação do papel de uma organização libertária no interior da sociedade a qual deseja modificar, entendendo as inevitáveis contradições daí resultantes e destacando os princípios que a orientam. É isso o que tentarei fazer aqui: tensionar princípios e prescrições práticas, reflexões teóricas com análises de experiências concretas - um exercício arriscado, mas necessário.
Movimento ou organização? Algumas precisões conceituais
escher-6Em um artigo anteriormente publicado aqui no Passa Palavra [1], o companheiro Marcelo Lopes de Souza caracterizou um movimento social como sendo um “processo de ‘movimentação’ de uma parte da sociedade, a qual, insatisfeita com a sua posição e/ou com aquilo que identifica como os rumos e as tendências da sociedade em questão, resiste e se revolta, dando origem às contestações e insurgências as mais diversificadas, indo das mais quotidianas, táticas e informais às mais programáticas, institucionalizadas e planejadas.” Na esteira de um processo de lutas, um movimento social constitui-se a si mesmo, criando identidades coletivas e instituições próprias. Entendido desta forma, o movimento operário, assim como o movimento feminista, o movimento negro e tantos outros, é, também ele, um movimento social.
Os sindicatos revolucionários, bem como alguns partidos de massas dos séculos XIX e XX, são, pois, criações de um movimento social específico, o movimento operário. Movimentos sociais como os dos sem-terra, sem-teto, movimento pelo passe-livre, entre outros, devem ser considerados como novas criações históricas de algo mais amplo, a classe trabalhadora (mas que não se referenciam, necessariamente, pela questão do trabalho), assim como já fora o próprio movimento operário. Foram criados, entre outras razões, tanto pela degenerescência de instrumentos como os sindicatos ou os partidos, quanto pela anterior inexistência de espaços de (auto)representação política de uma parcela da classe trabalhadora a qual não fora incorporada (ou fora, de maneira muito breve e precária) às relações formais de assalariamento.
Entendidos os movimentos sociais como uma categoria mais ampla, é importante não confundi-los com as suas organizações específicas. Como já disse o mesmo autor do artigo mencionado logo acima, “uma organização equivale, no sentido de uma entidade institucional, a um grupo de indivíduos que, com base em regras livremente acertadas (autogestão) ou impostas de cima para baixo (estrutura piramidal), interagem visando ao atingimento de determinados objetivos. Assim como dificilmente há movimentos sociais sem organizações, também é muito difícil dar exemplos de movimentos sociais importantes abrigando ou gravitando uma única organização. Tomar uma organização pelo próprio movimento é tomar a parte pelo todo. Uma tal metonímia possui uma função ideológica – a de valorizar uma dada organização, dando a entender que ela seria o próprio movimento, além de servir para valorizar a palavra ‘movimento’ e omitir termos tidos como suspeitos ou antipáticos, como, justamente, ‘organização’.”
Da liderança espontânea à cristalização da liderança
escher-1As precisões feitas na seção anterior, para além de proporcionarem clareza conceitual, são importantes para a tentativa de elucidação do problema da burocratização no âmbito dos movimentos sociais. A partir delas, podemos, por exemplo, identificar certa parcialidade e, até mesmo, algumas contradições nas formulações do texto “Entre o fogo e a panela”. Afinal, ele enfatiza a análise de organizações dos movimentos sociais caracterizadas por algum tipo de hierarquia formal interna, como se percebe através de passagens como esta: “um dos critérios para avaliar se pode ou não formar-se uma classe de novos chefes no interior de um movimento social consiste em saber em que medida as direções são controladas pela base…”. É parcial, pois, por deixar de lado as organizações caracterizadas por estruturas autogeridas, em que não existem direções, e contraditória com alguns dos princípios que os próprios autores defendem: “[n]um movimento […], a vida das pessoas tem de ser diferente desde o início, elas têm de se organizar de uma maneira que rompa com a sociedade dominante”. Ora, de um ponto de vista libertário, um dos elementos centrais da “sociedade dominante” é, justamente, a divisão entre dirigentes e dirigidos, entre os que mandam e os que executam, os que formulam as regras de uma sociedade dada e os que apenas se submetem a elas. Deste modo, a questão que consiste em saber “em que medida as direções são controladas pela base” não serve como critério de avaliação da imunização contra a burocracia, pois a própria divisão entre direção e base reproduz o fundamento da burocratização.
Na Comuna de Paris – experiência histórica de onde os autores de “Entre o fogo e a panela…” resgatam alguns dos antídotos contra a burocratização –, por exemplo, não havia dirigentes, mas delegados, os quais se distinguem daqueles por seus mandatos suscetíveis à revogação a qualquer momento por parte da base, pela curta duração e rotatividade das suas funções, e para a realização, única e exclusivamente, de tarefas as quais as bases não tenham condições materiais para realizar por conta própria. As direções, por seu turno, por mais que se autoconsiderem (ou apenas declarem) submetidas às decisões gerais provenientes dos espaços de deliberação da base, acabam por desempenhar o insidioso e sutil papel de tutelar os rumos estratégicos de um movimento ou organização, controlando não apenas o seu tempo, como a agenda do que deve ser discutido e decidido, e de que maneira isto deve ser feito.
É evidente que a distinção feita logo acima não resolve o problema da tendência quase natural da emergência de líderes, isto é, de indivíduos que, espontaneamente, exercem um destacado papel na organização das lutas. Não se pode negar que, na maior parte dos casos, um dirigente exerce um papel de liderança no seio da organização ou fração do movimento do qual faz parte. No entanto, o que distingue um dirigente de um líder espontâneo é a cristalização, de maneira institucionalizada, da liderança que aquele exerce ou já exerceu em um dado momento. Para uma organização libertária, em que a cristalização dos papéis de liderança está, ao menos estatutariamente, interdita, resta o risco do acúmulo e da rotinização de funções de certos militantes destacados, os quais, mesmo sem o rótulo de dirigentes, acabam desempenhando o mesmo papel do que eles e competindo, ainda que involuntariamente, para a passividade da base e a burocratização dos movimentos sociais.
Para ilustrar este problema com um exemplo concreto, menciono o caso do militante M., da ocupação Chiquinha Gonzaga, localizada no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Antes de residir na referida ocupação – da qual participou desde a fase de reuniões que antecedeu a posse do edifício –, M. era morador de rua e, provavelmente por conta da sua então pouca experiência política, nunca era convidado pelos militantes experimentados a participar das reuniões “a portas fechadas” em que faziam avaliações dos rumos da ocupação e discutiam temas a serem propostos para a pauta das reuniões do “coletivo de moradores” (a assembléia geral) da Chiquinha Gonzaga; onde, aliás, apenas os moradores tinham (e continuam tendo até hoje) poder de voto. Ora, é evidente que, mesmo tendo como espaço deliberativo soberano as assembléias gerais em um corpo político em que inexistam direções formais, procedimentos como os dos tais militantes experimentados, relatados pelo companheiro M., tendem a aumentar a separação entre um grupo específico e a base do movimento. A origem dessa separação parte do pressuposto (compartilhado tanto entre adeptos da verticalização quanto entre muitos militantes libertários) de que a base é incapaz de compreender os assuntos políticos que transcendem a sua experiência imediata sem um prévio trabalho de “formação” - ministrado por elas próprias, claro… Parecem não se dar conta que o melhor instrumento de formação política é, justamente, a realização de uma ação política em todos os seus aspectos, os quais não se limitam ao ativismo (ocupar, manifestar) ou à participação nas assembléias, mas inclui a reflexão conjunta e quotidiana sobre os rumos da própria ação. Isto é, aprende-se fazendo e discutindo-se sobre o que se faz.
No caso específico (e, digamos, excepcional) do companheiro M., sua inserção nos círculos de “discussão estratégica” da ocupação Chiquinha Gonzaga se deu de maneira forçada, por vontade sua, e em decorrência da desconfiança por ele nutrida contra um grupo separado de indivíduos que se reuniam a portas fechadas para discutir sobre os assuntos do seu local de moradia. Hoje, M. é um dos mais ativos militantes do movimento dos sem-teto no Rio de Janeiro, tendo já participado, inclusive, da organização de outras ocupações. Mas podemos imaginar quantos outros elementos da base não são apartados de um processo de desenvolvimento político similar pela pressuposição da sua incapacidade por parte de direções ou de militantes autodeclarados como libertários; ou, então, por não serem tão desconfiados quanto o companheiro M. …
O papel da organização libertária na ampliação do movimento revolucionário
Neste ponto da argumentação, cabe encarar um problema mais geral, que consiste em saber qual é, afinal, o papel de uma organização revolucionária e libertária. No nosso entendimento, a razão de ser de uma tal organização – enquanto um grupamento de revolucionários para cujas regras todos participaram diretamente da escolha – é competir, no que estiver ao seu alcance, para a auto-organização da população em todas as dimensões da vida coletiva, ou, valendo-nos dos termos de Cornelius Castoriadis, em tudo o que é partilhável e participável no seio da sociedade: na organização do trabalho, na gestão e no planejamento da aglomeração em que se vive, na escolha das regras e das leis, na instituição dos valores, sobretudo na definição (e inexorável redefinição) do que seja a liberdade e a justiça.
escher-5Se este é o seu objetivo precípuo, então uma organização revolucionária libertária (de agora em diante, supriremos um dos dois termos, pois não se pode ser libertário sem ser revolucionário) deve recusar qualquer pretensão a encerrar em si mesma o conjunto da vida política do ambiente específico no qual atua diretamente, e, muito menos, evidentemente, da vida social como um todo. Por decorrência, a prioridade de uma tal organização é a criação ou o fomento de espaços de autodeterminação política que a ultrapassem, como assembléias de moradores, coletivos de discussão e ação, conselhos de trabalhadores, cooperativas, conselhos de gestão municipal, confederações de conselhos e uma série de outras instituições historicamente criadas no processo de emancipação humana, além do sem-fim de instituições a ser criadas. Em existindo tais espaços, uma organização libertária deve evitar, a todo custo, confundir-se com eles, como ocorre, por exemplo, quando exige-se que todos os participantes destes espaços se filiem aos seus quadros, ou, então – e, muitas vezes, diante da quase impossibilidade da realização efetiva de semelhante exigência – pretender monopolizar a sua influência sobre eles. Trata-se também, pois, de um grande exercício de anti-sectarismo.
Evidentemente, a absorção de novos militantes aos quadros da organização permite a ampliação do seu trabalho político, e, por isso, é desejável. Desde que tal absorção se dê respeitando o princípio da livre-associação, depurada de qualquer forma de constrangimento ou imposição, como, por exemplo, vincular filiações ao apoio da causa de um determinado grupo, ou à obtenção de certos benefícios. Trazendo, mais uma vez, um exemplo concreto, lembro-me da ocasião em que presenciei um advogado e dirigente de uma organização do movimento dos sem-teto do Rio de Janeiro, em visita a uma pequena ocupação ameaçada de despejo, exigir aos moradores que se filiassem ao seu “movimento” se quisessem receber sua assessoria jurídica. Exemplos como esse são bem conhecidos de todos…
Tendo-se em mente os objetivos principais de uma organização libertária, o problema da ampliação dos quadros e da capacidade da sua atuação espacial (municipal, estadual, regional, nacional…) deixa de ser uma prioridade. Mais importante do que o seu “inchaço” é a sua ação exemplar em criar e fomentar os espaços de autodeterminação popular associada a uma formulação ideológica e programática coerentes. Se a sua ação é verdadeiramente exemplar do ponto de vista revolucionário, nada mais natural do que a incorporação de muitos dos seus princípios por outros grupamentos revolucionários localizados em outras partes, adaptando-os de acordo com as suas realidades e com os seus próprios pressupostos políticos. Com a licença da metáfora, diríamos que uma organização libertária deve manter a sua ação e os seus princípios sob o registro do “copy left” e do “código fonte aberto”, deixando que outros colaboradores a utilizem e a aprimorem livremente. Assim, o problema central deixa de ser o da ampliação da organização revolucionária, e passa a ser o da ampliação e maturação do movimento revolucionário, o que se concretiza pela capacidade de surgirem, em toda parte, lutas emancipatórias capazes de se articularem e de traçarem estratégias em comum.
Financiamentos ou conquistas? Cooperação ou cooptação? A relação da organização libertária com o Estado e com os partidos
Chegamos, finalmente, ao tratamento de três assuntos espinhosos: o problema do financiamento das organizações ou dos próprios movimentos sociais; a questão de saber como pautar a interlocução e as negociações com o aparelho do Estado, e o tema dos famigerados “militantes liberados”. A abordagem destes problemas pede a caracterização da ação política e do Estado, mesmo que de maneira breve e parcial.
escher-3A política se caracteriza pela ação, uma ação explicitamente voltada para a definição de regras e de modos de fazer no âmago de uma coletividade dada. Estas escolhas derivam da posição social dos participantes, das relações que engendram entre si e com os “de fora”, e se baseiam nos seus valores e princípios. Consequentemente, a política é um assunto que, em última instância, trata da opinião dos que a fazem, e não de uma verdade objetiva. Tendo em vista, portanto, este conjunto complexo de contingências que constitui a ação política, temos que tal ação é, sempre, indeterminada, pois não se pode precisar com exatidão no que ela resultará. Até aí, concordando o leitor ou não, nenhum problema. Resta identificar a implicação destas considerações a respeito da ação política para a elucidação dos problemas do financiamento das organizações e dos “militantes liberados”.
Pois bem: resulta que a política não é um assunto técnico, ou uma questão reservada aos especialistas da política; isto é, os burocratas (da qual a tecnoburocracia é parte, mas não a única). A política é discussão e deliberação explícitas da vida em sociedade, um assunto de todos. O que não significa que, no fazer político, deixe de existir uma série de demandas que pressupõem um conhecimento técnico ou científico de diversas matérias. São conhecimentos aos quais chamarei aqui de “acessórios” à ação política, fundamentais para a tomada de decisões com conhecimento de causa. Antes de definir o orçamento de uma coletividade, por exemplo, é importante saber o custo real do que se pretende fazer, a viabilidade técnica de fazê-lo, o peso dessa escolha nos orçamentos futuros e por aí vai. Mas a posse de nenhum desses conhecimentos habilita, aprioristicamente, um especialista a julgar com maior conhecimento de causa que qualquer outro membro de uma coletividade a necessidade de se construírem novas escolas, centros de lazer, cinemas ou salas de concerto. Pois este tipo de escolha pertence ao reino da opinião e está atrelado à experiência de cada um.
Outro tipo de “saberes acessórios” à política são aqueles referentes à operacionalização concreta das lutas e a sua ampliação. Saber editar um jornal e imprimi-lo; saber fazer um site para divulgação; dirigir um carro para transportar os militantes; fazer mapas ou plantas para um projeto; calcular o impacto de uma taxa de juros x sobre uma cooperativa de crédito, etc., etc., etc. Estes são alguns exemplos de saberes importantíssimos às lutas emancipatórias, e a existência em si de pessoas dotadas destas capacidades no âmbito de uma organização não implica, como que de maneira automática, a sua burocratização. A burocratização ocorre quando, no processo político que envolve uma coletividade, um grupo separado de indivíduos se encarrega das escolhas principais, ou de manipulá-las ao encontro do seus interesses (mesmo que sejam meramente políticos). Como na sociedade capitalista a divisão do trabalho especializa e aparta os saberes ditos “intelectuais” (mormente o técnico-científico) dos saberes “manuais”, sobrevalorizando o primeiro em detrimento do segundo, os detentores daqueles acabam por monopolizar a condução dos processos políticos, restando aos demais a sua execução. Isto se reproduz, como já abordamos aqui, mesmo entre muitas das organizações que pretendem acabar com o sistema baseado em tal separação.
Como a política trata, fundamentalmente, da vida das pessoas em coletividade, a existência de alguém que “viva da política” significa, em palavras claras, que este alguém se dedica a organizar a vida alheia, descolando-se, portanto, da coletividade da qual faz parte. Há, evidentemente, muitos argumentos para justificar este tipo de descolamento, mas todos convergem para a crença na impossibilidade da participação direta do conjunto da coletividade na ação política. No caso dos militantes de esquerda, esta crença traduz-se de diversas maneiras: seja pelo desconhecimento, por parte da classe trabalhadora, de uma teoria supostamente revolucionária, a qual compreendem como uma espécie de plano técnico da revolução (maturação das condições materiais + ação da vanguarda revolucionária para impulsionar as massas à tomada do poder + estatização e planificação da economia = socialismo); seja pela análise segundo a qual a classe trabalhadora, atada à exploração do seu tempo pelo capitalismo, não tem como participar intensivamente do processo de sua emancipação, salvo em momentos esporádicos de mobilização. O segundo caso é o mais sutil, e dele resulta a aceitação dos tais “militantes liberados” (seria este um eufemismo para o consagrado termo “militantes profissionais”?). A lógica para a existência de tais militantes seria a da necessidade de alguns indivíduos que, livres dos grilhões do trabalho, agiriam intensivamente, conseguindo, por meio de certas conquistas políticas e materiais, pavimentar o caminho para a participação direta das massas. O problema é que, nestes casos, a própria eficiência da luta dos “militantes liberados” acaba competindo para sabotar as suas intenções emancipatórias, pois leva à passividade das bases, uma vez que se reforça entre elas a crença de que a política é uma tarefa para especialistas ou pessoas exclusivamente dedicadas a ela.
escher-4Antes de terminar este assunto, cabe um último esclarecimento, tendo em vista que a questão da profissionalização da política releva grandes problemas práticos: um advogado remunerado por uma organização e que trabalha a tempo integral para ela não é, a princípio, um “militante liberado” ou um burocrata, mas um advogado. A existência de advogados, arquitetos, cientistas sociais, secretários, tipógrafos, mecânicos e demais profissionais remunerados por uma organização política deve responder às seguintes questões para saber se ela contribui ou não para a burocratização: estes profissionais são empregados para assessorar ou para gerir as lutas dos movimentos? Qual é a capacidade de (auto)financiamento de uma organização dotada de tal aparelho? No entanto, um indivíduo que é remunerado, por tempo indeterminado, para cuidar da condução do processo político, este é o “militante liberado” por excelência: aquele que se desocupa do sustento da sua vida para “fazer política”. Ora, se é necessário designar um companheiro ou companheira para a realização de uma tarefa política que lhe exija o abandono temporário do seu posto de trabalho, como no caso do envio de um delegado de conselho de fábrica a uma assembléia, então que ele seja liberado ou compensado materialmente pelo tempo da duração da tarefa, ao término da qual ele retorna às suas funções profissionais. Afora esse tipo de situação, um militante que deseja “liberar-se” da exploração do seu tempo de trabalho para dedicar-se com mais afinco às lutas sociais deve esforçar-se para criar ambientes de trabalho onde isto seja possível, como cooperativas autogeridas, ou, então, dar a sua quota de militância nos marcos de uma atividade coletiva importante em que a soma dos poucos faz o muito, buscando, assim, acabar com os fundamentos da sociedade que o priva da liberdade [2] [3].
Com o parágrafo anterior, já antecipo, em alguns pontos, o tratamento do problema do financiamento das organizações revolucionárias e dos movimentos sociais em geral. Não é nenhum mistério que a dependência material é uma das bases da dependência política, e esse princípio fundamental da dominação sobre a classe trabalhadora não perderia sua validade para os seus instrumentos políticos. Não obstante isso, há importantes diferenças entre o financiamento externo de organizações específicas e a conquista de recursos por parte dos movimentos sociais de maneira mais ampla. De um lado, uma organização que tem grande parte dos seus recursos auferida de fontes externas, e sobretudo quando ela possui um quadro considerável de pessoas que extraem o fundamental da sua renda dessas fontes, então a tendência é a criação de dependência. Ademais, uma organização que necessita de muitos quadros remunerados, em geral o necessita não simplesmente para a louvável causa de defender e apoiar as bases, mas para geri-las, funcionando, no mais das vezes, como entrepostos (mais do que mediadores) entre o aparelho do Estado, as ONGs e as bases. Tornam-se, em verdade, burocratas.
Quando se ultrapassa o quadro restrito das organizações e consideram-se os movimentos sociais de maneira ampla, o problema não se coloca mais como financiamento, mas como a aquisição de recursos para a melhoria das condições de vida. Ora, obter recursos do aparelho do Estado, em princípio, não é um atestado de cooptação ou de burocratização de um movimento. Parafraseando algumas das organizações piqueteras mais radicais e autônomas a respeito do repasse dos planes trabajar pelo governo argentino a estas organizações, trata-se de retirar do Estado, à força, aquilo que o Estado tomou do povo. O problema todo consiste em saber, porém, em quais condições os recursos são conseguidos, e por intermédio de quem. Se são impostas exigências de favorecimento político, ou se a atribuição dos recursos visa claramente ao arrefecimento das mobilizações, então, evidentemente, trata-se de cooptação e do enfraquecimento do movimento. Além disso, se há intermediários que se impõem nas interlocuções, sejam eles políticos partidários, sejam organizações especializadas nisso, então a aquisição de recursos está a alimentar as relações clientelistas e o fortalecimento dos “gestores” dos movimentos sociais, papel muito caracteristicamente desempenhado por ONGs e por aparelhos de “militantes liberados”. Ora, na reconquista dos recursos apropriados pelo Estado por parte das bases sociais mobilizadas, não há fórmulas infalíveis de imunização contra os espectros da cooptação e da burocratização das lutas. O que se deve é guardar dois princípios básicos: 1) o tradicional princípio do controle direto da base sobre os eventuais delegados escolhidos para as negociações, além da sua permanente rotatividade; 2) que a liberação dos recursos não esteja vinculada a uma exigência de edulcoramento da radicalidade do movimento.
escher-10Mas até que ponto é desejável a aproximação entre os movimentos sociais e suas organizações com o aparelho do Estado? Em que medida se pode negociar e até mesmo cooperar sem fusionar-se ou, mais apropriadamente, diluir-se na burocracia estatal? Aqui entra a necessária caracterização da instituição Estado.
O Estado (qualquer Estado: o do binômio capitalismo + “democracia” representativa; o Estado burocrático soviético; o de tipo “asiático”, etc.,) é, por definição, uma instituição caracterizada pela sua separação perante o grupamento humano sobre o qual se impõe. Apesar dos mecanismos de controle conquistados através da história das lutas emancipatórias, o Estado é, indisputavelmente, uma instituição heterônoma, a qual deve ser combatida e substituída por um regime político em que a sociedade se autogoverna através de mecanismos de democracia direta. O problema todo é que os Estados modernos impõem prerrogativas fundamentais, tais como o uso legítimo da violência (ou, ao menos, do monopólio para a sua outorgação), a imposição de tributos e contribuições, a emissão de moeda e uma série de outros monopólios que fazem com que os Estados atuais sejam estruturas políticas, econômicas e sociológicas incontornáveis. Embora sejam, de mais a mais, concorrenciados pelas, e subjugados às, empresas capitalistas, os Estados concentram ainda (e continuarão concentrando por um bom tempo) uma grande fatia do produto do trabalho social nos territórios sobre os quais se impõem, representando, ainda, para a maior parte da população, o único espaço político legítimo. É, portanto, diante da sua quase onipresença que a questão de saber como lidar com o Estado e seu aparelho antes da sua dissolução ocupou a reflexão de tantos revolucionários. A este respeito, os caminhos são todos nebulosos.
Se compartilhamos o princípio exposto pelos companheiros do Passa Palavra em “Entre o fogo e a panela…”, princípio segundo o qual, em um movimento, a vida das pessoas tem de ser diferente desde o início, organizando-se de uma maneira que rompa com a sociedade dominante, então a disputa política para o controle do aparelho do Estado está fora de questão. Isto não veta, contudo, a interlocução com este aparelho quase onipresente ou, ainda, possíveis parcerias, desde que elas se dêem em prol de um processo de retomada, por parte da população, das atribuições de controle da vida social que o Estado detém. Assim, junto com a ação direta e a criação de espaços de autodeterminação popular, inclui-se entre as estratégias dos movimentos libertários a “desestatização” da sociedade. A administração direta de recursos públicos, ou em parceria, quando não se perde a autonomia dos movimentos; a pressão para a aprovação de emendas populares e/ou projetos de lei que reduzam as disparidades sócio-espaciais e aumentem as margens de manobra para a autodeterminação; a substituição de atribuições da burocracia estatal para o controle popular, parcial ou direto, como um orçamento ou plano diretor participativos, desde que, claro, as escolhas sejam tomadas como deliberações, e não como mera consulta; a substituição de agências e empresas estatais (assim como privadas!) por cooperativas ou comitês radicalmente horizontais e diretamente regulados pelos trabalhadores e usuários, etc. Nenhum destes exemplos é utópico, figurando, antes, no rico arsenal de experiências históricas dos movimentos sociais, e não apenas em momentos revolucionários. Para sintetizar este programa, o já mencionado Marcelo Lopes de Souza tem empregado a máxima, segundo a qual os movimentos sociais precisam saber articular a sua ação, eventualmente, com o Estado, quase sempre apesar do Estado, e, em última instância, contra o Estado [4].
Esta máxima se aplica, em decorrência, para orientar também a relação das organizações e movimentos sociais libertários com os partidos de esquerda. Devido à sua estrutura e ao campo político no qual orbitam (a disputa pelo aparelho do Estado), os partidos, mesmo os que se reivindicam revolucionários, merecem perpétua desconfiança e exigem cuidados por parte dos movimentos. A experiência histórica tem mostrado que, quando se aproximam dos movimentos sociais, mesmo que, em um primeiro momento, defendam as suas reivindicações, os partidos procuram sempre tutelá-los ou cooptá-los. Porém, apesar da enorme força centrípeta exercida pelos partidos políticos, diante de uma conjuntura crescentemente conservadora e da fraqueza da classe trabalhadora, algumas alianças conjunturais não podem ser de todo riscadas da agenda dos movimentos. Afinal, a sabedoria política não está em preservar intactos os princípios mediante o isolamento sectarista ou a inércia, mas em saber como preservá-los quando se precisa cooperar com companheiros que divergem ideológica e pragmaticamente de nós. Mais uma vez, os movimentos precisam estabelecer para si, de maneira explícita, uma política a ser respeitada quando das suas alianças táticas e estratégicas, valendo-se de alguns recursos como a recusa a certas concessões que restrinjam a sua autonomia e radicalidade e, de maneira mais concreta, a recusa a cargos (eletivos ou comissionados) na burocracia partidária ou governamental. Que os delegados dos movimentos participem de conselhos ou fóruns oficiais de governos ou partidos, cabe uma avaliação caso-a-caso. Que alguns dos seus integrantes aceitem os referidos cargos, isto é contribuir diretamente para o processo de burocratização dos movimentos sociais.
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Notas
[1] SOUZA, Marcelo Lopes de (2010): Os apoiadores acadêmicos dos movimentos sociais: seu papel, seus desafios, nota 2. In: Passa Palavra (aqui).
[2] Nos debates subsequentes ao artigo “Entre o fogo e a panela…”, pudemos observar muitas confusões em torno do problema dos “militantes liberados”. Em uma intervenção, chegou-se a considerar o subcomandante insurgente Marcos, do Exército Zapatista de Liberação Nacional, um “militante liberado”. Marcos não é um “militante liberado”, e tampouco um burocrata, mas um chefe militar insurgente, o que é bem diferente. Está encarregado de tarefas que, apesar das evidentes implicações políticas, são instrumentais (a condução da guerra). Se acaso usasse da sua posição de força para controlar os espaços de decisão política em defesa dos quais combate (o que ocorreu com diversas organizações revolucionárias), então se constituiria em um burocrata (ou, antes, um ditador), o que não é o caso.
[3] Nota-se, entre os mais precários entre os precários (ou, para usar um conceito cunhado pelo companheiro Marcelo Lopes de Souza, os “hiperprecários” – isto é, aqueles que foram apenas superficial e brevemente inseridos às relações formais de assalariamento, ou que simplesmente nunca foram inseridos e sobrevivem, basicamente, de atividades informais e estão inseridos em realidades sócio-espaciais nas quais algo como um Estado de bem-estar social nunca existiu efetivamente) – que, por não estarem diretamente controlados pela empresa capitalista, possuem maior liberdade de organização política relativamente aos assalariados. Não é de se estranhar, portanto, que nos meios urbanos eles componham o grosso da base social dos mais importantes movimentos da atualidade, como o movimento dos sem-teto. Evidentemente, sua situação de (hiper)precariedade impõe grandes obstáculos à ampliação das suas lutas, e por isso o desenvolvimento de atividades econômicas baseadas na autogestão e na cooperação aparecem em destaque, já há um bom tempo, na ordem do dia destes movimentos. Tais esforços são muito mais importantes para a autonomia destes movimentos do que a criação de uma nova burocracia conformada por “militantes liberados”, o que, no curto prazo, poderia resultar em algumas conquistas imediatas, mas que, no médio e longo prazos, acarretaria o esgotamento do seu potencial revolucionário. No caso dos militantes subjugados pela empresa capitalista (ou pelas estatais que incorporam, de mais a mais, as relações capitalistas, como no caso das instituições de ensino), consideramos muito mais válido o esforço para instituir a auto-organização nos seus próprios ambientes de trabalho, o que passa inevitavelmente por combater as burocracias sindicais. Este esforço coletivo ultrapassa em muito o descolamento de um ou outro militante da rotina de exploração para se tornarem os gestores dos seus próprios movimentos, ou, ainda, dos movimentos alheios.
[4] SOUZA, Marcelo Lopes de (2006: pp.454-465): A prisão e a ágora: reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Ou, do mesmo autor: Together with the state, despite the state, against the state: Social movements as ‘critical urban planning’ agents. City, v. 10, p. 327-342, 2006.
escher-7Desenhos de Mauritius Escher